sábado, 30 de março de 2013

Capítulo 10


            Zahra bateu na porta dos aposentos da Rainha Naama, e não obteve resposta por algum tempo. Manteve-se ali em pé, esperando. Bateu de novo e esperou mais um pouco, quando a Rainha finalmente atendeu.
            — Eu não quero falar, Zahra, por favor — ela deixou a porta entreaberta. — Volte outra hora, por favor.
            — Naama, deixe-me entrar. Precisamos falar.
            Naama suspirou de forma contrariada e abriu a porta para a maga e, algumas vezes, sua confidente. Zahra era esperta, confiante, e habilidosa com as palavras, por isso, era uma das poucas pessoas que aguentava uma conversa com a – irritante – Rainha.
            — Nasser me pediu para dizer que se acostume com a ideia de ter Nirina como aprendiz do reino — disse Zahra, cuidadosa. Não queria contrariar a senhora do reino tão cedo.
            — Eu sei — assentiu Naama, sem vontade. — Ele vem me dizendo isso desde que recebemos a carta de Arthus.
            — A jovem não tem nada a ver com os acontecimentos do passado, minha senhora, entenda, por favor. Isso será melhor para todos nós, inclusive para a senhora, Naama.
            — Obrigada pela tentativa de consolo, Zahra, mas sabe que eu não consigo engolir aquela... Aquela filha de magos tão arrogantes.
            A maga balançou a cabeça diante do depósito tão grande de ódio que Naama conseguia conter dentro de si. Afinou os olhos.
            — Sinto muito, senhora Naama, mas sua decisão é imprudente e não é sábia — desafiou Zahra, a única capaz de contrariar a Rainha. — Nirina é importante para o reino. Ela é sábia apesar da pouca idade e é forte. Cresceu sem conhecer seus pais e agora vai crescer sem Arthus, que era como um pai. Admita que o reino precisa de Nirina, e esqueça os desentendimentos do passado.
            — Você fala isso como alguém que não sente o que eu sinto — prosseguiu com o desafio, acostumada às conversas com Zahra. — Farei o que for necessário para que Nirina cresça como clarividente, pelo Reino. Por Sira. Não por você, não por Nasser.
            — É o que estive pedindo esse tempo todo, minha senhora. Esqueça os sentimentos e governe como alguém racional.
            — Está dizendo que não sei ser racional em minhas decisões, Zahra?
            — Foi o que deixei claro, não foi? Eu disse com todas as letras. Afinal, é só olhar para você, para ver o quanto de ódio você está sentindo. Esse sentimento esquecido foi revivido, e você não vê Nirina como a pessoa que é. Vê Nirina como Elisa!
            — Não fale o nome dessa mulher — disse Naama, parando por uns segundos. — Zahra, saia. Disse que não queria falar e você está apenas dizendo coisas que não quero ouvir.
            — As coisas que você não quer ouvir tem nome, Naama — disse Zahra em tom áspero, se afastando até a porta. — As coisas que você não quer ouvir se chamam “Verdade”, minha senhora, e por isso elas doem tanto.
            Naama mordeu o lábio inferior, contrariada, sentindo os olhos encherem de lágrimas. Apertou as mãos e ergueu a cabeça, decidindo que não choraria por nada. Nem pelas coisas que Zahra dizia, nem por Nirina, nem por Nasser. Muito menos por se lembrar de Elisa, nem por se lembrar de Adiel. Limpou as lágrimas dos olhos de modo sutil e passou as mãos pelo belo vestido longo, recompondo-se. Decidiu que seria mais energética com Zahra da próxima vez que ela tentasse falar essas bobeiras. Perguntou-se onde Martin estaria e saiu do quarto a sua procura.


            Selene e Nirina haviam terminado de arrumar as coisas e estavam à mesa da sala de estudos tomando chás que Selene havia preparado. A aprendiz os achou tão bons quanto os de Arthus e sentiu-se satisfeita por isso. As duas mantinham-se em silêncio a maior parte do tempo. Quando ouviram alguém bater à porta, Selene se precipitou em levantar e atender.
            — Senhora Zahra — disse Selene, sorrindo, dando um passo para o lado convidando-a a entrar. — Quer que eu a deixe com Nirina para que possam conversar?
            — Por favor, Selene — assentiu Zahra, agradecendo.
            — Há chás na mesa — sorriu a mestra, antes de sair. — Sinta-se à vontade.
            — Muito obrigada, Selene, não devo demorar. Em breve a chamarei de novo.
            Selene assentiu com uma leve inclinação da cabeça e as deixou. Assim que Zahra entrou, Nirina se levantou.
            — Senhora Zahra! — exclamou sorrindo, empolgada.
            — Por favor, Nirina — ela riu. — Só Zahra está ótimo. Somos mestra e aprendiz a partir de agora.
            — Se assim desejar, Zahra — sentiu-se no lugar de Kevin e compreendeu como era difícil deixar o tratamento formal de lado ao se dirigir com alguém superior. Pensou no soldado e em Reno e sorriu. Constatou, surpresa, que estava com uma leve saudade da voz energética do líder do exército.
            — Como está se sentindo? — perguntou, sentando-se à mesa e pegando um pouco de chá.
            — Deslocada, como era de se esperar — ela deu um sorriso sem graça. — Já sinto falta de Arthus e de minha amiga Riana, mas estou gostando. Não de tudo, mas estou gostando.
            Zahra riu divertida. Imaginou que se daria bem com Nirina.
            — Você é sincera, gosto disso.
            — Obrigada, mestra.
            A clarividente sentiu comoção pela garota ao ser chamada desse jeito.
            — Sabe, eu posso sentir sua presença — disse Zahra. — Você tem um grande poder mágico. Magos clarividentes podem sentir a presença um do outro, assim como podem sentir a presença de magos negros. Sabia disso?
            — Sabia sobre os magos negros, não sobre os outros clarividentes. Não sinto nada da sua presença.
            — Isso acontece porque a presença dos magos negros é mais fácil de ser sentida. Algo quase automático, por não ser algo natural. A maioria dos magos negros não controlam outros elementos.
            — Por que isso? — indagou Nirina, curiosa.
            — Começou em batalhas, quando reis perceberam que controlar espectros dava uma grande vantagem nas guerras. Mas, como sabe, o que um espectro sofre reflete em seu invocador, e perder magos elementais seria perder demais. Por isso, vários reis ordenaram que a magia negra fosse ensinada a soldados comuns, para que pudesse combater com espectros e a vida dos magos natos fosse preservada.
            — Isso é um tanto covarde.
            — É o que eu também acho. Existe outra coisa que quero que saiba desde já. Magos negros também podem sentir a presença de clarividentes, mas não todos. Apenas os magos elementais que aprenderam magia negra conseguem sentir a presença dos clarividentes. Pessoas comuns que aprenderam magia negra não podem sentir um mago clarividente, o que era uma desvantagem nessas guerras. Clarividentes encontravam os invocadores dos espectros e os matavam de surpresa. Já com os magos elementais que aprenderam magia, é um pouco mais difícil, embora não tanto, já que a concentração para controlar os espectros é alta demais.
            — É bom saber mais sobre isso — disse Nirina, tomando um pouco de sua xícara. — Estou ansiosa para começar com as aulas de clarividência.
            — Eu também estou — admitiu Zahra.— Nunca tive uma aprendiz antes. É bom que saiba desde agora que aprender magia clarividente requer, acima de tudo, muita meditação e concentração. Consiste em treinar e controlar sua mente, que tem um poder maior que a dos magos comuns e, sem a preparação necessária, pode fugir de seu controle. É como uma faca de dois gumes: sem o treinamento adequado, essa habilidade pode te levar à loucura. Mas não se preocupe — tranquilizou-a —, isso não vai acontecer agora que vamos começar com as aulas.
            — Fico feliz e aliviada — disse Nirina. — Será hoje?
            — Amanhã. Hoje quero que você arrume todas as suas coisas e se acostume com o lugar onde vai morar. Já conheceu seus vizinhos aqui ao lado?
            — Existem aprendizes morando aqui também?
            — Sim — sorriu Zahra. — Outros aprendizes, geralmente da família do Rei ou conhecidos, que futuramente servirão no exército de magos. Gostará de conhecê-los.
            — Espero que sim mesmo — assentiu Nirina. — Agora preciso de novos amigos, já que não tenho mais Riana.
            — Eu posso contar como uma? — perguntou, com um sorriso discreto.
            — É claro que sim! — respondeu Nirina, surpresa e satisfeita. — Muito obrigada por tudo, Zahra.
            — Vejo-a amanhã?
            — Com toda certeza, mestra.
            — Cuide-se — sussurrou Zahra. — Existem alguns predadores te rondando — ela riu.
            — O quê?
            — Amanhã lhe conto mais. Vou chamar Selene de volta.
            — Muito obrigada por tudo.
            Zahra sorriu e se reverenciou de forma suave. Nirina ficou sozinha durante algum tempo no quarto até que sua outra mestra voltasse, pensando no que a clarividente havia falado antes de sair.
            — Nirina — disse Selene, da porta. — Devemos começar nossas aulas amanhã, assim como suas aulas com Zahra. Ela lhe avisou, certo?
            — Sim — respondeu, terminando de tomar o chá.
            — Devo lhe deixar sozinha agora para que descanse, logo virão chamá-la para o almoço com os outros aprendizes. Encontre-nos no salão principal, o que você chegou agora cedo. Vou mandar alguém para arrumar essa mesa e levar as xícaras embora.
            — Certo — sorriu Nirina, desacostumada a não fazer nada. — Obrigada.
            Pouco tempo depois que Selene saiu, entrou uma serviçal baixa e magra, que tinha os movimentos rápidos e precisos, e que entrou em silêncio e saiu em silêncio reverenciando Nirina de forma breve em despedida. A aprendiz ergueu uma sobrancelha e foi para a cama de seu quarto, jogando-se no colchão.
            Sentiu-se sozinha novamente. Suspirou pensando em Arthus e como queria ter alguém para conversar. Passou pouco tempo deitada olhando para o teto até que ouviu batidas à porta. Seria Selene ou Zahra de volta? Será que elas haviam esquecido algo? Percebendo o quanto estava feliz por ficar sozinha, suspirou sem vontade, mas colocou uma expressão amena no rosto antes de atender. Quando a abriu, no entanto, sentiu vontade de fechar.
            — Olá, Nirina — disse o visitante, estendendo a mão para cumprimentá-la. Ela a apertou sem vontade e se forçou a abrir um sorriso amigável.
            — Pois não, Martin? Em que posso ajudá-lo?
            — Vim ver se a nova aprendiz precisa de algo — disse ele, com um irritante sorriso no rosto.
            — Estou bem, obrigada. Tenho Kevin para olhar por mim.
            — Kevin... Sei — riu Martin, cruzando os braços à frente do corpo e erguendo as sobrancelhas. — Não vai me convidar para entrar?
            Nirina deu um passo para o lado em silêncio, convidando-o com um gesto simples da mão, estendendo-a para o interior do cômodo.
            Martin entrou e olhou em volta, ainda com os braços cruzados. Sentou-se à mesinha sem ser convidado e Nirina manteve-se em pé.
            — Nenhum chá? Nada?
            — Desculpe — disse a aprendiz, fingindo arrependimento. — Você veio sem avisar e eu cheguei há pouco.
            — Ah, é claro — riu Martin. — Você tem razão. Então, o que está achando da nova casa?
            — É ótima.
            — Deve se sentir sozinha, não? Sem Arthus para lhe fazer companhia...
            — Um pouco, mas eu me acostumo.
            — Sábia — disse ele, sem abandonar o sorriso irritante que tinha no rosto. — E o que já sabe sobre os mais importantes da Corte, aqueles que os receberam na chegada?
            — O suficiente — limitou-se a dizer, arrancando outra risada de escárnio de Martin. — Como disse, cheguei há pouco tempo.
            — Entendo, entendo — disse, levantando. — Só tome cuidado com as pessoas em que quer confiar. Sabe, esse mundo é bem diferente da casinha de madeira em que Arthus vivia, espero que ele tenha te falado tudo sobre isso.
            Nirina manteve-se em silêncio, feliz pelo mago ter feito menção de ir embora.
            — Ah, se precisar de algo, não hesite em me chamar. Voltarei para visitas regulares, às ordens da Rainha.
            — Obrigada — disse, segurando a vontade de mandá-lo embora de uma vez por todas.
            Quando abriu a porta, avistou alguém que com certeza lhe faria uma visita agradável: Reno. Estava se sentindo como a atração principal do dia, mas imaginou que fosse algo normal. Assim que o líder dos soldados se aproximou do líder dos magos, no entanto, pareceu ignorar completamente que Nirina estava ao lado.
            — O que você veio fazer aqui, Martin? — disse Reno em tom áspero, um tom que Nirina nem imaginou que sua voz fosse capaz de adquirir.
            — Ora, Reno e sua simpatia de sempre para comigo — Martin disse, rindo. A aprendiz ficou olhando para os dois, imaginando qual era o desentendimento entre eles. “Não deve ser difícil se desentender com Martin, afinal”. — Vim apenas ver se nossa querida aprendiz necessita de algo.
            — Com certeza não — olhou para Nirina com um sorriso, depois afinou os olhos para o mago. — Dá o fora daqui.
            — Estava mesmo de saída — falou Martin, como se não quisesse admitir que faria o que Reno pedia —, não se preocupe. Mas voltarei. A Rainha Naama me pediu que ficasse de olho em Nirina.
            — Imagino mesmo qual deve ser a preocupação da Rainha com a jovem — depois pigarreou, lembrando-se de que Nirina estava parada ao lado. — Suas roupas — riu Reno, arrancando um rosnado de Martin. — Está demorando pra sair, Martin, quer ajuda?
            — Não — respondeu Martin, irritado. — Até mais, Nirina. Só pra constatar, eu tentei ser seu novo mestre — acrescentou, desafiando o olhar de Reno. — Se não gosta da minha companhia, agradeça a Zahra por ter sugerido Selene, que há anos não tinha uma aprendiz do reino. — Sentiu um tom de desprezo enquanto ele mencionava o nome da nova mestra de água, então lembrou que Martin odiava Hazael e Selene era apaixonada pelo mago de fogo. Ele provavelmente sabia disso.
            — Sai logo daqui, Martin! — disse Reno, elevando a voz. — Duvido que a sua magia lhe servirá muito bem se eu decidir desembainhar a minha espada.
            — Cuidado, Reno, cuidado — sorriu, aquele sorriso irritante novamente. — Você tem falado demais ultimamente. Não vá perder seu cargo por isso, hein?
            — Esquece que ocupamos o mesmo nível hierárquico? Saia de uma vez por todas ou saio eu.
            — Martin — disse Nirina, chamando a atenção dos dois homens. — Faça como Reno pede, por favor. Sem mais discussões em frente a meu quarto, e eu quero a companhia do líder dos soldados. Queira fazer a gentileza.
            Martin ergueu uma sobrancelha, surpreso com a atitude e a educação da garota. Foi sábio o suficiente para sair em silêncio enquanto Reno exibia um sorriso vitorioso, tirando a mão da espada atada à sua cintura.
            — Muito obrigado pela intervenção, Nirina. Eu estava prestes a te desrespeitar com uma violência desnecessária.
            Nirina se inclinou para perto de Reno. Com um sorriso, sussurrou:
            — Podia ter dado um soco nele por mim — depois, riu, seguida por Reno. — Queira entrar, por favor.
            O líder dos soldados seguiu a aprendiz, fechando a porta atrás de si depois.
            — Martin parece esquecer que eu, embora inexperiente, sou uma maga clarividente. Dificilmente vou me enganar com relação à personalidade de alguém.
            — Ele é assim mesmo — disse Reno. — Vim só para uma visita rápida.
            — Veio em boa hora para me salvar de Martin.
            — Ele lhe disse algo desagradável? Porque ele parece ter um talento natural para essas coisas.
            — Não exatamente, mas era sempre insinuante.
            — Como esperado. Se precisar de ajuda, me chame. Pode ser por Kevin também. Eu soube que Martin estava de olho em você por isso designei um de meus homens mais fiéis para me manter a par da situação. Você pode confiar em Kevin.
            — Muito obrigada, Reno — disse, comovida. — Sua ajuda é de grande valia.
            — Você é diferente, sabia? — ele riu, fazendo-a erguer uma sobrancelha. — Fala como uma pessoa mais velha apesar da idade. Me faz lembrar de Zahra.
            — Isso é um elogio e tanto, obrigada.
            — Vamos nos dar muito bem, mas voltarei, às minhas ordens — riu ao lembrar de Martin, fazendo a jovem sorrir. — Vou dizer algo desnecessário, mas que vale a pena relembrar: tome cuidado com esse homem.
            — É. Você não é o primeiro a me dizer isso.
            — Pois é, ainda existem algumas pessoas sensatas por aqui. Bem — disse Reno, aproximando-se da porta — você deve estar cansada de receber tantas visitas. Deixarei que descanse até a hora do almoço.
            — É bom vê-lo, Reno. Seu bom humor é contagiante.
            — Eu tento! — riu de forma divertida, acenando. — Vejo-a em breve.
            — Até mais, Reno!
            Fechou a porta de seu quarto, suspirando. As pessoas que não gostavam de Martin diziam para tomar cuidado com ele; Martin a dizia para tomar cuidado com as pessoas que ele não gostava. Sentia-se confusa tão cedo e, apesar de gostar de Selene, Reno e Zahra, não conhecia nenhum dos três há bastante tempo para confiar cem por cento. Sabia que detestava Martin. Detestara-o desde que soube que ele era responsável pela perseguição a Hazael. Martin podia dizer o que quisesse, mas jamais confiaria nele.
            De repente, lembrou-se da recepção áspera da Rainha e o que Nasser havia dito, sobre problemas passados que a Rainha não conseguia superar. Franziu a testa enquanto olhava para o teto, deitada na cama, apreciando o silêncio do lugar. Mas a hora passava rápido e em breve a chamariam para o salão principal, onde se reuniria com os outros aprendizes para o almoço então outro ritual de apresentações seguiria.
            Fechou os olhos e chegou a sentir a respiração ficar mais profunda. O colchão era confortável e o silêncio, aconchegante. Sentou-se na cama assustada pelas batidas à porta, e logo foi atender. Torceu para que não fosse Martin, nem a Rainha Naama.
            Assim que abriu, a mesma serviçal rápida e silenciosa que levara as xícaras do chá estava a sua frente. A moça fez uma reverência leve e anunciou:
            — Estão esperando sua presença no salão principal para o almoço com os outros aprendizes, senhorita Nirina — depois, entregou túnicas novas, de cor roxa: a mesma cor que Zahra usava enquanto estava no reino, como clarividente. — Deve usar essas túnicas publicamente como uniforme agora. Vista-se e estarão à espera. Necessita de mais alguma coisa?
            — Não, muito obrigada — disse a aprendiz com um sorriso, e logo a serviçal se virou e foi embora, sem dizer nada a mais.
            Nirina entrou e trocou as roupas pela túnica roxa. Ela era linda. O tecido era fosco como a túnica azul de Martin, mas de um roxo escuro que a aprendiz adorou. Era larga, descia até seus pés e as mangas eram igualmente largas. O tecido pendia de seus pulsos, dando-lhe um ar de ser mais velha. Nirina gostou e tomou o caminho até o salão principal.
            Quando chegou, avistou várias pessoas desconhecidas. Provavelmente eram os aprendizes e seus mestres. Percebeu que Selene e Zahra estavam ali também, e ela logo foi ao encontro das duas.
            Todos estavam em silêncio e Zahra logo seguiu com as apresentações.
            — Nirina, você terá tempo para conhecê-los melhor, mas — conduziu sua aprendiz pela fileira, da esquerda para a direita: — Adrien e seu mestre, Raoni.
            Ambos se reverenciaram e deram as boas vindas. Como magos de terra, vestiam a túnica cinza escuro. Os aprendizes não tinham as pontas das túnicas enfeitadas, e os mestres tinham as pontas enfeitadas como as de Martin, mas com a cor prateada.
            — Ísis e sua mestra, Shira. — Como magas de fogo, vestiam a túnica vermelha. — Aiko e seu mestre, Sven — magos de ar, vestiam a cor verde. — Laina e sua mestra, Ranya — como também eram magas de ar, vestiam o verde. — E, por fim, aprendizes, devem ter ouvido sobre Nirina, maga de água e aprendiz de clarividente. Selene e eu seremos suas mestras. Devemos seguir para o refeitório?
            Nirina respirou fundo de forma inaudível e seguiu suas mestras. Estava cansada de tantas apresentações. Percebeu que queria deitar em sua cama e dormir pelo resto dia.
            Chegou ao almoço, no entanto, um grande banquete perfeitamente servido. Poucos serviçais iam e vinham, terminando os últimos detalhes. Ela sentiu falta dos almoços simples na casa de Arthus.
            O almoço seguiu de forma rápida. Os aprendizes e seus mestres estavam em silêncio, como se temessem dizer algo. Nirina gostou da comida, mas não gostou muito da companhia: se não fosse pelas tentativas de Selene e Zahra de conversar, ninguém teria dito uma palavra.
            Saiu rápido do salão quando terminou o almoço, despedindo-se de todos de forma atenciosa e se enfiou em seu quarto. Jogou-se na cama e abraçou seu travesseiro, sem conseguir parar de pensar em Arthus e Riana. Estava rodeada por pessoas desconhecidas e de costumes estranhos, e ela se sentia completamente perdida.
            Não demorou muito para adormecer, desejando que o dia seguinte demorasse a chegar.

terça-feira, 26 de março de 2013

Capítulo 9


            O soldado abriu a porta, que dava para o salão principal do castelo. Era muito espaçoso e bonito, com decorações belas e simples. Nada muito espalhafatoso, mas charmoso. Ele seguia com um tapete marrom de bordas douradas até a escada central, que se dividia em duas mais para cima, levando a dois caminhos do andar de cima. Olhando para as escadas, Nirina percebeu que todos que a esperavam estavam ao pé da escada principal. Passou os olhos por todos e reconheceu um rosto familiar: Zahra.
            — Senhores — ela ouviu a voz de Kevin, alta, chamando a atenção de todos. — Apresento-lhes Nirina de Sira, a aprendiz de maga clarividente do reino.
            Todos ficaram em silêncio enquanto ela se aproximava. Kevin andou com Nirina até seus anfitriões, que estavam em fila, um ao lado do outro. A primeira pessoa que se apresentou a ela foi Zahra, que estava em uma das pontas da fileira.
            — Nirina — ela disse, com uma leve inclinação da cabeça. — Seja bem vinda. Acho que você já me conhece.
            Nirina se preparou para usar o vocabulário mais formal e educado que havia aprendido com seu antigo mestre. Como mago da Corte, Arthus sabia exatamente como ela devia se portar, caso precisasse, algum dia, falar com os senhores do reino.
            — O que é uma honra, senhora Zahra — ela respondeu, com uma leve reverência.
            A próxima mulher era um pouco mais alta que Zahra. Não era atraente, mas era simpática. Seus cabelos eram longos e escuros. Observou, com curiosidade, que devia parecer com sua mãe. Usava a túnica que era uniforme dos magos do reino, azul, de um tecido fosco e elegante.
            — Saudações, Nirina — disse a mulher, com um sorriso carinhoso. — Chamo-me Selene, e a partir de hoje serei sua mestra em magia de água.
            — É um prazer conhecê-la, senhora Selene. — Limitou-se a dizer, pensando em Arthus. A mulher a sua frente parecia atenciosa e compreensiva, no entanto, e ela teve uma boa sensação a respeito da nova professora.
            O próximo da fila era um homem imponente, de ar arrogante. Usava a mesma túnica que era uniforme dos magos do Rei, azul como a de Selene, mas com bordas douradas na ponta das mangas e nas bordas da gola em seu pescoço.
            — Nirina — ele disse, seco, em tom sério e sem um sorriso como o dos outros. — Meus cumprimentos. Chamo-me Martin, sou o líder dos magos do exército do Rei. Provavelmente trabalharemos juntos em alguns anos.
            — É uma honra, senhor Martin — disse Nirina, contrariada. O homem à sua frente era extremamente arrogante e nada simpático, e ela sentiu vontade de afinar os olhos enquanto o encarava. “Espero ansiosa pelo dia em que lhe darei ordens”, teve vontade de responder, mas disse algo bem diferente: — Espero ansiosa pelo dia em que trabalharemos juntos.
            Seu próximo anfitrião também era um homem, mas bem diferente de Martin: este a recebeu com um sorriso caloroso e um aperto de mão firme.
            — Bom dia, Nirina, seja bem vinda — ele disse, olhando-a de forma tão simpática que ela se obrigou a sorrir. — Sou Reno, líder dos soldados do exército do Rei. Eu designei Kevin para a senhorita — abriu mais o sorriso, quase rindo. — O que achou dele, hein? Bom homem, não é?
            — É um prazer e uma honra imensa conhecê-lo, senhor Reno — ela se reverenciou de leve, divertida pela personalidade do líder. — Com certeza, Kevin é um bom homem. Obrigada pela escolha.
            Atrás de Nirina, Kevin encolhia-se devagar. Havia pedido ao chefe que não fizesse menção a nada do tipo. Ele havia dito que não diria nada, mas Reno não conseguia resistir a uma oportunidade de brincar com seus homens. Quando o soldado encarou o líder, este deu uma piscadela, sorrindo. Kevin sorriu sem jeito e desviou o olhar.
            O próximo era alguém que ela conhecia: Rei Nasser. Ela parou a sua frente e fez uma reverência profunda.
            — Erga-se, Nirina — ele disse, sério. Quando ela a olhou, ele abriu um sorriso. — Seja bem vinda. Você é uma de nós agora, aja como tal.
            — Muito obrigada, meu senhor — limitou-se a dizer. Devia seguir o que ele havia dito. — Estou honrada.
            Ele assentiu e ela olhou para a próxima anfitriã, outra mulher: a Rainha Naama. Ela era diferente do que imaginava. Muito mais séria que o Rei, tinha o olhar esperto e afiado. Parecia desconfiar de todos, e era mais antipática que seu marido. Os dois nem mesmo combinavam como casal, ela reparou mentalmente.
            — Saudações, jovem aprendiz — ela disse, sem tratá-la pelo nome. — Seja bem vinda.
            — Muito obrigada, minha senhora — respondeu. — É uma honra.
            — Bem — disse Nasser, quando percebeu que as apresentações estavam terminadas. — Agora que está tudo certo, Selene, por favor, leve Nirina até seus aposentos. Kevin será o responsável por levar suas coisas até seu quarto.
            — Providenciarei roupas adequadas — disse Naama, em tom áspero.
            — Naama, agora não, por favor — o Rei disse, virando os olhos suavemente. — Existem coisas mais importantes a serem resolvidas.
            — Ela é maga do Reino agora, uma maga clarividente. Não pode andar por aí como se ainda fosse qualquer uma.
            Naama disse e virou-se para as escadas, começando a subi-las. Nirina foi sábia o suficiente para manter-se em silêncio enquanto Nasser voltava-se à aprendiz.
            — Desculpe-me, Nirina. Ela teve algumas frustrações no passado que não exatamente dizem respeito a você e tem dificuldade em superá-las.
            — Está tudo perfeitamente bem, meu senhor — respondeu a aprendiz, andando para o lado de Selene, que a chamou com um movimento suave da mão. — Obrigada por se importar.
            Nasser acenou afirmativamente com a cabeça e deixou que Nirina seguisse Selene até seu quarto. Zahra se aproximou do Rei e chegou bem perto.
            — Parece que Naama ainda não consegue esquecer, não é mesmo?
            — Fale com ela, Zahra — disse o Rei. — Diga que isso não pode interferir na vida da menina, e que ela terá que se acostumar com a ideia de que precisamos dessa aprendiz aqui, formada como maga clarividente.
            — Sim, senhor — sorriu Zahra, e em seguida subiu as escadas.
            Nasser mordeu o lábio inferior de leve, percebendo que todos já haviam saído, e subiu as escadas pouco tempo depois de Zahra.


            Selene guiou Nirina até o lugar que era preparado para os aprendizes de magia do reino. Era uma casa distanciada do castelo principal, extremamente confortável, que tinha vários quartos: um para cada aprendiz. Cada quarto tinha três cômodos pequenos: um quarto de dormir, uma sala de estudos – onde os aprendizes geralmente tinham aulas individuais – e o banheiro. Nirina gostou do lugar, apesar de preferir a casa de Arthus, com certeza.
            Selene abriu a porta e logo chegaram os serviçais com os pertences da aprendiz. As empregadas distribuíram tudo rapidamente nos guarda-roupas e deixaram os pertences pessoais por conta da nova moradora. Ela organizava as coisas quando Selene atraiu sua atenção:
            — Então, como está seu mestre, Arthus? — ela perguntou, com o sorriso atencioso de sempre. Nirina a olhou e continuou a arrumar as coisas, pensativa.
            — Bem — limitou-se a dizer, voltando a organizar.
            — Sabia que — prosseguiu Selene, numa tentativa de estabelecer maior contato com sua nova aluna — eu fiquei feliz quando soube que você era aprendiz de Arthus?
            — Por quê? — indagou a aprendiz, franzindo o cenho. — Você o conhece?
            — Arthus? — Selene riu, lembrando-se. — Ele foi meu mestre.
            — Sério? — Nirina arregalou os olhos, surpresa. — Isso faz tempo?
            — Um pouco — sorriu, olhando para os lados. — Ele foi meu primeiro mestre, na verdade. Não chegou a me formar, pois teve que sair. O Rei determinou que ele não seria mais um mago a seu serviço depois de ter ajudado um...
            — Um soldado justo a fugir do país — completou Nirina, séria. — Arthus me contou sobre Hazael. Estamos falando do mesmo homem, certo?
            — Sim — Selene inclinou a cabeça, sem abandonar o sorriso. — Arthus lhe contou tudo sobre ele? Estranho, pois ele nunca falava para ninguém sobre essa história.
            — Pois é. Ele disse que achou que eu merecia saber um pouco mais sobre seu passado. Mas esse homem, esse mago chamado Hazael — disse Nirina, parando de arrumar as coisas por um instante. — Você chegou a conhecê-lo?
            — Sim — respondeu a professora, desempacotando algumas das coisas da aprendiz. — Já que você sabe tanto sobre essa história, vou te contar mais uma coisa.
            Nirina voltou-se completamente para Selene e se sentou sobre a cama.
            — Na verdade, eu que pedi para Arthus que ajudasse Hazael a fugir de Sira — ela disse, arrancando um suspiro surpreso da jovem maga. — Eu — Selene sentiu o rosto esquentar, corando — era apaixonada por Hazael na época, e não queria que ele fosse pego pelos guardas de Martin.
            — Então... Espere — interrompeu a aprendiz, erguendo uma das mãos — Arthus me disse que existia um mago de água que odiava Hazael. Esse homem... É Martin?!
            — Exatamente — assentiu Selene. — Os dois não se davam bem, especialmente por serem magos de fogo e magos de água. Mas não é sempre assim. Eu, como maga de água, me apaixonei por ele também, que era de fogo. Quando os dois magos são homens e de elementos opostos, as disputas tendem a ficar mais acirradas.
            — Entendo — disse Nirina. — Quando Arthus me contou essa história, disse que podia estar errado, mas pensava que a maior parte da perseguição a Hazael havia acontecido por causa de um mago de água que o odiava. Esse homem é Martin — Selene confirmou com a cabeça, fazendo-a continuar. — Você acha que Arthus tem razão?
            — Acho. Martin odiava Hazael o suficiente para querê-lo morto.
            — O que Hazael fez assim de tão terrível para ele?
            — Essa é uma parte da história que você vai ter que esperar um pouco mais para ouvir, pequena Nirina — disse Selene, com o sorriso afável de sempre. — Mas aos poucos vamos conversando, e eu vou lhe contando mais sobre cada pessoa que faz parte da Corte e as minhas histórias. Combinadas?
            — Sim — sorriu Nirina, sentindo uma simpatia imensa pela nova mestra. — Muito obrigada pela conversa. Vejo que nos adaptaremos bem rápido!
            — Isso é ótimo! — disse, segurando uma das mãos de sua aprendiz. — Fico realmente feliz. Vou te ajudar a terminar de arrumar tudo. Quer minha ajuda?
            — Seria muito bom — Nirina levantou, voltando a arrumar as coisas.
            As duas ficaram em silêncio por um tempo, silêncio quebrado pela voz de Selene, que às vezes cantava. Ela tinha uma voz suave, de beleza inigualável, que tranquilizava a aprendiz. Nirina percebeu que gostava de ouvi-la cantar.
            — Selene — chamou, voltando-se a ela e juntando as mãos na frente do corpo. — Hazael... Você sabe onde Hazael está?
            — Não sei — mentiu Selene, protegendo o amigo, sem querer revelar o fato de que havia voltado à Ima. — Por que pergunta?
            — Ele parecia um homem justo. Admiro o fato de ele ter se recusado a matar um inimigo que implorava pela vida quando estava quase morto. E não gosto de Martin, desde a primeira vez que o vi hoje cedo.
            — Não se preocupe, Nirina — disse Selene, tentando tranquilizá-la. — Aposto que Hazael está bem. Ele era esperto o suficiente para fugir de seus perseguidores e sobreviver.
            — É bom saber disso — ela sorriu, voltando a arrumar as coisas. — E quanto a Martin? Quem é ele?
            — Martin... — Selene mordeu o lábio inferior, pensativa. — Ele é um homem ambicioso, que passaria por cima de qualquer um para conseguir seus objetivos. Ouço dizer que ele inveja o Rei Nasser por ter se casado com a Rainha Naama e sempre sonhou em tomar seu lugar como governante de Sira, mas podem ser só rumores. Você deve tomar cuidado com ele. Seja o mais evasiva possível com as perguntas que ele lhe fizer, e acredite: ele vai te questionar sempre que tiver a oportunidade. Se tiver dúvidas, Nirina, por favor, fale comigo.
            — Por que o Rei ainda o mantém como líder dos magos de seu exército? — Nirina franziu o cenho, surpresa. — Por que um cargo tão alto a um homem tão prepotente? Podia ser alguém como Reno.
            — Hazael diria que é porque o Rei não sabe escolher seus subordinados — riu Selene, lembrando-se das palavras do amigo de dias atrás. — Mas esqueça, Nirina. Não cabe a nós julgar as decisões tomadas pelo Rei. Quanto a Reno, acho que percebeu: nele você pode confiar. É um homem justo, simpático, divertido e energético. Ele sempre faz uma brincadeira quando passa por você, ou brinca com seu cabelo. Todos os seus homens o seguem por amor, porque o admiram e o respeitam. Acho que se eles tivessem que se matar em seu nome, fariam sem pensar duas vezes. O contrário de Martin: todos os seus homens o seguem por temor. Acho que se eles tivessem que morrer em seu nome, deixariam que Martin morresse.
            Nirina assentiu e soube que era o suficiente para saber por aquele dia. Sentiu-se grata, no entanto, por ter uma mestra tão carinhosa e disposta a lhe contar tanto sobre as coisas.
            Selene, por sua vez, não conseguia parar de pensar em Riana e no fato de que sabia que as duas eram amigas. Estava ansiosa por encontrar Hazael, Ian e Riana novamente e poder conversar com eles. Teriam muita coisa para compartilhar, e Hazael teria algumas surpresas. Sorriu em silêncio ao perceber como a história de Nirina e Riana parecia se entrelaçar sem que as duas soubessem. Algumas coincidências eram até mesmo estranhas demais. A mestra desempacotou as últimas coisas da aprendiz e sorriu, então voltou a cantar.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Capítulo 8


            Hazael andou de um lado para outro na sala da casa até que Ian o pedisse para parar. O mago de fogo estava impaciente, tentando pensar no que fazer.
            — Hazael, fica tranquilo — disse Ian. — No que você está pensando?
            — Alguém disse para Riana ficar longe da Nirina?
            — Não — respondeu Ian, seguido de Selene, que deu a mesma resposta. — Por quê? Ela me disse que não pretendia encontrar a amiga.
            — Ah é? — Hazael afinou os olhos. — Lembram que magos clarividentes podem sentir a presença de magos negros? Esqueceram disso, vocês dois?
            — Por que a preocupação, Hazael? — indagou Selene, surpresa.
            — Não é óbvio? Nirina vai sentir algo diferente em Riana como sentiu em você, Ian. Ela estará em uma situação complicada.
            — Isso é verdade — o mago de ar concordou. — Não havia pensado nisso. Mas, fale a verdade — continuou, encarando o amigo. — É só isso que está te preocupando?
            — Não — respondeu, seco. — Não é. Estive pensando em ir até a cidade.
            — Para quê, Hazael? — desaprovou Ian, virando os olhos em tom de decepção. — Está querendo que os guardas te encontrem?
            — Ah — resmungou o mago de fogo, e depois riu — você está querendo dizer que esses guardas do Rei vão me encontrar? Esses inúteis não conseguem encontrar algo que está embaixo de seus narizes. Se for Martin ainda no comando desse bando de idiotas, as coisas não terão mudado em um pouco.
            — Pare de pensar em Martin. Hora ou outra você fala nele, esqueça-o!
            — Esquecer? — disse Hazael, afinando os olhos. — Você está me pedindo pra esquecer aquele maldito daquele soldado, que dedicou grande parte da sua vida tentando arruinar a minha? Acha que eu voltei a Sira para quê? Ver como a cidade de Ima está?
            — Então... — Ian parou, encarando o amigo. — Então o único mago em que você está verdadeiramente interessado é Martin? E toda aquela conversa sobre ser contra magos que servem ao Rei?
            Hazael manteve-se em silêncio. Achava-se um tanto tolo às vezes por querer voltar e acertar as contas com Martin. Nem mesmo sabia se ele ainda estava no comando dos exércitos do Rei.
            — Selene — chamou a mulher, que o olhou instantaneamente. — Há quanto tempo você não é chamada para ser mestra de um aprendiz de mago do Rei?
            — Há uns anos, Hazael — ela respondeu, um tanto preocupada com os dois. Eles raramente discutiam, mas quando começavam era difícil fazer parar. — Por quê?
            — Eu precisava de alguém que pudesse me passar informações de dentro daquela Corte.
            — Sinto muito em mudar de assunto assim — disse Selene, surpreendendo aos dois homens —, mas quanto tempo mais vocês pretendem passar nessa casa? Tudo bem que ela não é um péssimo lugar — ela acrescentou, olhando em volta — mas a minha casa seria melhor. Por que não passamos essa noite lá enquanto acertamos todos os detalhes? Nem mesmo sabemos se essa casa tem um dono.
            — Ah, eu não queria que Hazael entrasse em Ima — resmungou Ian, contrariado.
            — Deixe de preocupação, Ian. Hazael é bem diferente do que era naquela época. Os cidadãos não o conheceram quando soldado, e os guardas do Rei não estão enfiados em cada beco de cada rua. Um capuz sobre sua cabeça e os moradores ao redor pensarão que se trata de um viajante.
            — A não ser que o próprio Martin esteja andando pela cidade fazendo rondas, já que ele seria o único capaz de me reconhecer — riu Hazael —, e eu duvido que aquele folgado se daria o trabalho. Afinal, ele é muito importante.
            Ian riu enquanto Selene abria um sorriso discreto.
            — Devemos ir? — sugeriu a maga de água, juntando algumas coisas que havia trazido para a casa.
            — E se Riana decidir vir para cá?— disse Ian, preocupado.
            — Você sempre pensa nela, não é, Ian? — Hazael perguntou em tom de escárnio.
            Ian torceu a boca, desaprovando, e apontou o dedo para o amigo.
            — Pare de insinuar assim as coisas — ele afinou os olhos. — Nem mesmo se atreva a pensar nisso. Estamos entendidos?
            — Olhe, Selene, como ele ficou bravo — riu novamente enquanto a maga se limitou a suspirar. — Se eu estivesse cem por cento errado, você teria reagido com mais indiferença.
            — Hazael... — começou Ian, depois parou, como se lembrasse de algo. — Esqueça. Isso não vale a pena.
            — Não mesmo — concordou Hazael. — Esqueceu que você sempre perde para mim, tanto em lutas quanto em discussões?
            — Maldito — riu Ian, jogando o capuz de sua capa sobre a cabeça. — Isso ainda terá volta.
            — Tive uma ideia bem simples — disse Hazael. — Podemos passar essa noite na casa de Selene para conversar um pouco melhor e à tarde, quando Riana costuma ir até lá, nós vamos também. Para não deixá-la sozinha, nem preocupada, já que ela parece pensar bastante em nós três.
            Ian sorriu. Apesar de irritado e impulsivo, Hazael sempre fora muito inteligente e observador. Eram características que Ian admirava muito no amigo.
            — Perfeito — disse Ian. — Assim perguntamos também se ela tem alguma informação para nós.
            Os três reuniram as poucas coisas que tinham e pegaram as estradas laterais para a cidade de Ima. As coisas de Selene estavam quase todas em sua casa, e Ian e Hazael, como estavam sempre viajando, tinham poucas coisas. Selene era quem os ajudava em Ima, dava um lugar para ficar e algumas vezes, roupas. Para Hazael, a mulher era como um anjo em sua vida.
            Não demoraram muito a chegar, apesar de Hazael ter reclamado a viagem inteira, dizendo que era longe demais e que estava cansado de andar. Ian suspirara diversas vezes, tentando aguentar o amigo e Selene apenas sorria com os dois, que às vezes pareciam dois irmãos pequenos se provocando e brigando.
            Quando a dona da casa abriu a porta, havia uma carta deixada no chão, que tinha sido jogada sob a porta. Selene a pegou enquanto Ian e Hazael entravam com suas coisas rapidamente.
            Assim que a maga terminou de ler, sorriu.
            — Hazael — chamou, segurando o papel entre as mãos. — Tenho algo aqui que você vai gostar.
            Hazael a olhou franzindo a testa, sem dizer nada.
            — É uma carta do Rei, assinada também por Zahra. Disseram que terão uma nova aprendiz de magia de água e querem que eu seja sua nova mestra. Devo estar na Corte amanhã de manhã para recebê-la.



            Nirina levantou cedo e começou a levar as malas para a sala, de onde seria mais fácil pegar e levar. Não imaginou, no entanto, que mandariam uma carruagem até a casa de Arthus e um guarda apenas para pegar suas malas e carregar. Imaginou então que seu antigo mestre não iria junto. Conforme ela levava as coisas para a sala, o guarda as carregava até o transporte em silêncio. Ele era calmo e parecia confiável, estranhamente simpático apesar do ar sério de competência que mantinha no rosto. Nirina estava um pouco curiosa a seu respeito.
            Não demorou muito até que todas as suas coisas estivessem prontas. Havia pegado todas as suas roupas e seus livros e poucos objetos pessoais de importância, como presentes que havia ganhado de Arthus e de Riana. Quando o guarda anunciou que estava tudo pronto, ela andou até Arthus, que expressava um sorriso triste.
            — Então — disse ele, abraçando-a e acariciando seus cabelos — está pronta para ir?
            — Sim, mestre — respondeu, resistindo à tentação de dizer um “Não”. — Estarei ansiosa para vê-lo novamente, no entanto.
            — Também estarei, Nirina. Também estarei.
            Os dois acompanharam o guarda até a carruagem, onde o cocheiro esperava. O guarda abriu a porta para a aprendiz e esperou que ela entrasse. Ela apertou as mãos de Arthus uma última vez e subiu, olhando para o mestre pela janela.
            — Não me olhe assim, Nirina — ele riu. — Não é um “Adeus”. É um “Até logo”.
            Ela sentiu vontade de chorar, mas decidiu que não faria isso. Manteve-se olhando para ele, até que Arthus invocou um pouco de água rapidamente e fez espirrar no rosto dela. Ela riu apesar de ter ficado com raiva de ter caído nessa de novo.
            — Só espere, Arthus — ela afinou os olhos, encarando-o. — Quando eu voltar, você vai ver o que vou fazer.
            Seu mestre riu enquanto o guarda mantinha um sorriso amistoso no rosto observando os dois.
            — Esperarei ansioso. Então lutaremos de igual para igual.
            — Posso seguir? — Interrompeu o guarda, cordial.
            — Sim, por favor — disse Arthus, sorrindo para Nirina.
            O guarda entrou na carruagem e fez sinal para o cocheiro seguisse, batendo no teto suavemente. A aprendiz olhou uma última vez para seu antigo mestre e não olhou mais para trás quando o veículo se pôs em movimento.
            Era a primeira vez que ela andava de carruagem, e a viagem era agradável. O clima estava bom: tinha o vento fresco da manhã, mas não estava frio. Gostou de olhar pelas janelas observando as árvores. Pensou nas estradas da floresta e na casa da clareira, e se algum dia descobriria o que sentira a respeito dela.
            Pela primeira vez, no entanto, sentiu-se completamente sozinha. Arthus era sua única família. Riana era uma boa amiga, mas Arthus estava sempre presente, cuidando dela desde seus cinco anos de idade. Sentiria falta de seu sorriso amigável, das conversas à noite, dos ensinamentos e dos bolos com chás à tarde. Perguntava-se sem parar quem seria seu novo mestre, e se se dariam bem. Estava sentindo o coração pesado, mas sabia que isso mudaria em breve. Logo teria várias coisas para estudar, afinal, precisaria aprender duas magias: a de clarividência e a de água, seu elemento principal. Apoiou o queixo na mão enquanto olhava entediada para a floresta, imaginando como seria sua chegada à Corte.
            — Ansiosa, senhorita Nirina? — perguntou o guarda, olhando-a de modo comovido. Nirina se assustou um pouco com a quebra inesperada do silêncio, mas sorriu diante da tentativa do guarda de entretê-la e do tratamento formal. Deveria se acostumar, no entanto. Ela seria uma das pessoas mais importantes dentro daquele palácio nos próximos dias.
            — Um pouco — respondeu Nirina, voltando seu olhar a ele. — Você sabe meu nome — notou, surpresa. — Posso saber o seu?
            — É claro — disse, polidamente. — Meu nome é Kevin, e fui designado para ser seu guarda a partir de hoje. Sabe como é o Rei, acha melhor e devo seguir suas ordens.
            — Isso é um tanto estranho — admitiu, sorrindo para Kevin. — Não estou acostumada a esse tipo de tratamento, vou precisar me habituar.
            — Tenho certeza que a senhorita conseguirá isso rápido — sorriu Kevin, amigável. — Deve estar cheia de expectativas.
            — Eu estou. Um pouco triste por ter deixado minha casa, mas tenho certeza de que o tempo há de resolver isso.
            — Um bocado sábia, apesar da pouca idade — disse o guarda, com uma leve reverência. — Isso será de serventia na Corte.
            Nirina sorriu enquanto observava as árvores da floresta, que passavam rápido e agora ficavam cada vez mais distantes. Distanciavam-se das estradas laterais e se aproximavam da cidade de Ima. Quando a aprendiz reparou, sentiu o coração acelerar.
            — Estou nervosa, Kevin — revelou, sentindo que poderia conversar com o guarda sobre seus sentimentos.
            — Isso é natural, senhorita, não se preocupe. Embora eu deva dizer que a Corte ficou agitada após receber as notícias através de seu mestre, e todos os esperam. Provavelmente o Rei, a Rainha, e os magos mais importantes do reino a estarão esperando junto com Zahra, a clarividente do reino.
            — Todos?! Todos eles estarão me esperando quando chegar?
            — Sim — sorriu Kevin. — Terá que se habituar como disse, senhorita Nirina. Você agora é um deles. Uma das pessoas mais importantes do reino.
            A aprendiz mordeu o lábio inferior de leve. Não havia passado por sua cabeça que a comitiva de recepção seria assim tão grande.
            — Como — franziu a testa, curiosa. — Como a Rainha Naama é?
            — Não sei se sou a melhor pessoa a falar sobre isso, senhorita, minhas desculpas. Será melhor que tire suas próprias conclusões.
            — Kevin — ele a olhou, atencioso. — Posso lhe pedir um favor?
            — Uma ordem, minha senhorita — respondeu. — Lembre que sou seu servo a partir de agora.
            — Por favor — disse, desacostumada com o tratamento extremamente formal. — Esqueça o “senhorita” e chame pelo nome. Nirina está ótimo.
            — Tem certeza?
            — Kevin, por favor — sorriu. — Se quiser que seja assim em frente aos outros, tudo bem. Mas quando estivermos sozinhos, pode ser um pouco menos formal?
            — Se assim desejar, Nirina — ele retribuiu o sorriso.
            De repente, a aprendiz se sentiu cheia de um carinho imenso por ele. Parecia uma boa pessoa, fiel e dedicado, além de extremamente educado. Esperava que pudessem se dar realmente bem nos próximos dias.
            — Muito obrigada, Kevin — ela olhou pela janela, constatando que já estavam andando dentro da cidade.
            — Nosso destino está próximo — advertiu Kevin, com um sorriso energético. — Está preparada?
            — Estou — respondeu, retesando-se no assento. — Graças a você — acrescentou. O guarda a havia tranquilizado bastante. Seria diferente se tivessem mandado alguém que não tivesse dito uma palavra durante a viagem inteira. — Muito obrigada, Kevin.
            O guarda se sentiu um pouco surpreso, mas inclinou levemente a cabeça.
            — Às suas ordens — pausou, começando a dizer “senhorita” —, Nirina.
            O coração da jovem maga acelerou novamente quando ela percebeu que a carruagem havia parado. Kevin abriu a porta e esperou que ela descesse. Estavam parados dentro dos domínios do palácio do Rei, e uma grande passarela estava à sua espera até que alcançassem as portas do Castelo.
            — Devemos entrar — disse Kevin. — Suas coisas serão retiradas por serviçais e levadas até seus aposentos em breve. Queira me acompanhar, por favor.
            Nirina assentiu em silêncio e andou atrás de Kevin, achando que seu coração ia saltar pela boca e cair ali mesmo, antes que alcançasse as portas do Castelo. Olhou em volta observando a beleza simples do gramado imenso e vivamente verde, tentando acalmar a respiração.
            Quando Kevin chegou à porta, olhou para Nirina.
            — Posso abrir? Estarão todos a sua espera. Prepare-se para um ritual de apresentações, que não será tão demorado.
            — Vamos, Kevin — ela assentiu. — Quanto mais rápido, melhor.